EDUCAR PARA O RESPEITO E O RECONHECIMENTO
Quem me Educa? Donatelli, 2004
Retalhos de Amália Simonetti
Se existe uma questão inquietante em todas as escolas, é a questão da disciplina/ indisciplina gerando violência simbólica ou explícita no seio escolar, trazendo à tona debates intensos e ansiedade de todos os lados.
Ultimamente, como educadora, procuro descobrir novos instrumentos de compreensão para entender o modelo da educação da família. Não quero tratar essa questão empiricamente busco pesquisas e estudos. Quero enxergar de forma clara para afastar o que pode embaçar o meu olhar crítico. De forma larga discernindo essa questão, família e escola de modo contextualizado e plural, sem confrontá-los ou culpá-los. Finalmente, de modo profundo buscando as causas e fundamentos teóricos principalmente na antropologia, sociologia, filosofia, psicologia e história.
Acredito que assim penso teórica e criticamente a realidade da educação hoje na família e na escola. Dizendo de forma mais clara: a falta de limites, a falta de quem manda em quem e como, a falta de respeito, a violência, a falta de princípios e valores na educação familiar íntima, ou simplesmente o que chamamos de “falta de educação” ou “má educação”.
Na escola nos deparamos com muitos questionamentos: Como reconhecer o outro se estamos numa sociedade narcísea? Como entender a agressividade das novas gerações que chegam à escola? Como proceder diante da afronta ou das violências verbal e física com os professores? Como compreender as transgressões sem ter que se retornar a uma prática pedagógica autoritária e coercitiva? Como fazer para as crianças enxergarem o coletivo? Como instalar o nosso papel de formadora, educadora e socializadora, papel primordial da escola, se em casa os filhos não têm respeito e reconhecimento nem pelas pessoas da sua ligação mais íntima e afetiva: pai, mãe, irmãos ou outros membros da família.
Acredito que o princípio de tudo está na ética: POR UMA EDUCAÇÃO ÉTICA é o tema do nosso encontro deste ano. Acredito que não se pode falar de ética sem enxergar a relação com o outro. Ter atitude ética, sentimento ético, é falar de reciprocidade e alteridade. Daí o porquê do nosso tema de reflexão com vocês: EDUCAR PARA O RESPEITO E O RECONHECIMENTO. Respeitar o outro, enxergar o outro e reconhecê-lo. Enxergar o outro que nos faz existir, não existe o eu sem o outro, é no outro que eu existo. (veja o vídeo de Terezinha Rios – A escola e a Ética)
Apropriei-me do livro Quem me educa? de Dante Donatelli (ARX, 2004) que mostra através da antropologia e sociologia as mudanças ocorridas na esfera pública e privada provocando um novo modelo familiar, ou seja, a base antropológica da família sofreu uma transformação principalmente a partir da década de 60 quando cai o modelo burguês.
Do séc. XVIII até a primeira metade do séc. XX no modelo ocidental burguês dominante, as definições de privado e público eram bem ordenadas. Tudo que competia à esfera da vida dos filhos pertencia aos pais. Estes decidiam tudo, desde a roupa ao casamento, era claro o papel dos pais e o papel dos filhos. A eles pais cabiam a responsabilidade da educação moral e autoridade moral com juízos de valor e aos filhos a obediência. Mesmo quando a família entregava à escola a função de educar os filhos, família e escola tinham os mesmos valores morais, ou seja, os valores cristãos.
O iluminismo burguês do séc. XVIII, representado por Rousseau e Kant, tinha claro que o papel da família era preservar a vida privada, íntima, resguardando a sua dignidade. No entanto era a vida pública, com forte influência da igreja, que regia todas as relações nas quais as regras moral e a ética era de conhecimento de todos. Mas, a atribuição da preservação da moralidade era da família, aos filhos cabia respeitar e obedecer à risca que fora aprendido em casa.
Com a revolução industrial e o desenvolvimento capitalista a esfera pública foi perdendo terreno para esfera da economia privada, assim como a igreja também foi perdendo seu controle na propagação de valores morais. Mas, a grande ruptura se dá nas décadas de 60 e 70, mais de cem anos após a revolução francesa de 1848. Essas décadas foram decisivas no mundo ocidental: contestação política, liberdade sexual, liberação da mulher e a queda dos valores burgueses. Com a perda dos valores, verdade e poder absolutos, o que se colocou no lugar? Fanatismos religiosos? Ética capitalista do ter no lugar do ser? Valorização e busca desenfreada de prazer e felicidade? O vazio do que é certo e errado, bem e mal, bom e ruim, como vazio do sentido ético, provocou um niilismo. Ou seja, vontade do nada, ou do tudo pode, do tanto faz, do sem futuro, da desesperança, do “nonada”.
O que mudou no espaço da casa, na família após todas as transformações a partir dos anos 60? O que mudou na codificação dos princípios de valores que regem a educação dos filhos? E aí…? A quem cabe a tarefa da educação e responsabilização perante os filhos? Diante da revolução dos valores, ter filhos, cuidar e educá-los parece ter ficado anos luz de homens/pais e mulheres/mães.
Conferimos que as figuras masculina/pai, e feminina/mãe, mudaram radicalmente de papel. As mulheres nas disputas do privado acabam por impor para os homens outros papéis. Os novos valores permitiram as mulheres reinventarem o público e o privado. Pais e as mães, ausentes em casa, presentes na sua tarefa de trabalho, não têm mais tempo para a tarefa de educar os filhos. Tornou-se arcaico a administração da vida doméstica. Nós, da geração pós-anos-60 desfrutamos, para além do bem e do mal, a ideia de liberdade e individualismo, “ossos” da conquista da democracia.
Constituir uma família hoje é antes de tudo elaborar projetos financeiros de vida em comum. Os filhos que antes eram uma consequência do casamento hoje é um projeto. O formato de família nuclear atual, tem menor número de filhos (em 1950 a família tinha em média 5,8 filhos, hoje não passa de 2,1). Outros fatores como o grande índice de separação, pais ausentes, novas tecnologias, a internet permeando a vida familiar, novas relações entre marido e mulher, fazem com que mães e pais se sintam culpados em relações aos filhos e em nome dessa culpa tudo pode. Migramos de uma situação de total indiferença para com os filhos na idade média para o extremo oposto da superproteção. Hoje existe um amor desmedido dos pais e mães que paradoxalmente estão ausentes, daí a culpa.
A liberdade conquistada no séc. XX, aos poucos foi se tornando egoísmo narcíseo. Mães e pais chegam às escolas e pedem para que seus filhos sejam tratados como se fossem indivíduos únicos. Não dão conta que a escola é um espaço coletivo e tem um compromisso com todos e não apenas com seu filho. Claro que a atenção individual e o atendimento às particularidades e singularidades de cada criança é importante, mas isso não dá o direito da professora enxergar e proteger só uma criança. O que a professora precisa é enxergar cada criança e todas ao mesmo tempo, pode ser paradoxal, mas é possível quando se respeita e reconhece coletivamente o grupo e constrói com as crianças uma educação ética para o bem comum.
A vida coletiva na escola serve como referência para a percepção do outro, é na escola que tomamos consciência de que tudo não e só meu, da diferença entre as pessoas, da diversidade que nos rodeia. É pela percepção das diferenças, no processo de socialização, que a criança descobre que é ao mesmo tempo única, mas o seu coleguinha existe e é único também, isso é fundamental na educação ética.
Pergunto: como educar para o respeito e o reconhecimento na escola se cada família trata seu filho como único e também deseja que seu filho seja tratado como único pela professora? Esse estado individualista exacerbado faz com que os alunos não respeitem e reconheçam o colega, a professora. Mães e pais precisam perceber que com um claro estatuto moral formador, com definição clara de limite se constrói uma educação ética, onde se respeita e reconhece o outro.
Pausa!! O MARAVILHOSO MUNDO DAS FESTAS DE ANIVERSÁRIO…
A ausência de papéis claramente definidos na família, entre homens/pais e mulheres/mães, a confusão da administração doméstica e o formato de trabalho hoje, permitem essa crise na educação dos filhos. Reféns dessa realidade, a família não consegue dar limites e formação moral como forma de referendar sentido da vida dos filhos de forma ética. É importante que a família como criadora, mantenedora e gestora dos filhos, retome seu papel de responsável pela construção de valores de caráter moral.
Uma coisa é certa compete somente à família assumir tal condição è não compete à escola construir o alicerce da educação moral dos seus filhos e filhas. Mesmo a escola sendo uma instituição de educação, não é o lugar capaz de dar legitimidade à base de valores morais da educação dos filhos. Como lugar privilegiado de formação e educação coletiva a escola tem como atributo a educação ética de seus alunos, vistos coletivamente, vistos como alunos e não como filhos. De nada vale à escola reafirmar valores e regras morais de convívio social, se no plano familiar eles são desconhecidos ou desprezados, ou não valem nada: Educar juntos sim – família e escola, cada um no seu papel.
A escola como instituição mais próxima à família sofre pelo vazio da educação, pelo respeito e reconhecimento. Como consolidar uma educação ética na competitividade? Não é tarefa fácil para as famílias e as escolas que querem educar para o respeito e reconhecimento. Na atualidade a ética e a moralidade em vigor são impostas pelo capital. Esse capitalismo que já engendrou como valor moral não quem se é, mas o que se faz o que se tem. Tudo pode ser medido pelos bens materiais que podem ofender ou alegrar. Os filhos são recompensados materialmente, “recompensas morais ofendem a ética capitalista”. O preceito moral que interessa é vencer não importa como ou a que custo, essa ética é um empecilho grave para a família e escola na educação do respeito e reconhecimento pelo outro.
A confusão, contradição e indefinição de “polis e oikia” se cobra outras ações da escola na atualidade. O que cabe hoje a escola? Cabe-nos compreender – por que essa instituição – que tem por dever a educação e a socialização da criança – parece entrar numa guerra surda com a família (duelo de culpas e responsabilidades) no momento de impor as crianças regras e valores que, acredita-se, seja a base da vida social desses novos cidadãos.
Está claro que o papel da escola é ensinar saberes ditos escolares, é local de aprendizagem da herança intelectual, é espaço do coletivo. Que tem como função social e política a formação de cidadãos éticos, referendando valores morais que são construídos na família. A escola não reinventará, culpará ou redimirá a família. Contudo, e longe disso, pode expor, corajosamente as chagas e incoerências da educação dos filhos e juntos tentar mudar em nome da ética e por respeito e reconhecimento ao outro, ao seu filho e a VIDA.
Tânia Zagury (1993) mostra em sua pesquisa que são basicamente três características da nova geração de pais e mães da classe media e alta: não ser autoritário, insegurança em dar limites e regras aos filhos e a culpa em relação a eles. O desejo das famílias em não repetir o modelo autoritário da geração anterior, recai em não saber mandar e dar limites, exercer autoridade, com medo de ser autoritário, os pais e mães querem ser bonzinhos, amigos. Quanto à insegurança da família na forma de agir com os filhos também impede de proibir, frustrar: não sabem o que proibir, quando e como. E finalmente o sentimento de culpa em relação aos filhos implica na compaixão e pena dos mesmos.
Concluindo vimos: ruptura público/privado, quebras de paradigmas, revolução dos valores, mudanças de papel homem/pai e da mulher/mãe, crise na educação dos filhos… sou esperançosa, acredito que tem saída: quebrando paradigmas capitalistas creio eu, lutando pela não corrupção na política creio eu, valorizando a vida familiar creio eu, respeitando a alteridade creio eu, cada um tendo claro o seu papel, promovendo linhas de fuga em favor da solidariedade e de uma cultura de paz.
Para refletir pergunto: com quais valores e princípios se orienta a vida intima familiar? Qual o papel do amor e respeito na família hoje? Quem é de fato responsável pela educação dos filhos? A quem cabe impor-lhes limites fundados em regras morais e valores? Onde e em quem reside a autoridade da família hoje? Quem e como se exerce a “função paterna, materna e fraterna”? Como a família surge diante da escola, e essa diante da família